sábado, setembro 30, 2006

Ela finge ser feliz – Parte 1


Maria Luísa


A infância é um refúgio, corro pra lá todas as vezes que me falta o chão, fico escondida, covardemente entregue ao medo e seguramente envolvida por lembranças.

No domingo, acordei ao meio dia, como sempre. Ao contrário dos outros dias da semana que acordo sentindo cheiro de café, no domingo, acordo sentindo cheiro de molho bolonhesa, como sempre. Todos se preparavam para o tradicional almoço de domingo na casa da minha tia, irmã da minha mãe. Minha família pela parte materna é engraçada porque minha vó que tem só uma irmã teve duas filhas, minha mãe e minha tia. Minha tia tem duas filhas. E minha mãe tem eu e minha irmã. Resumindo, o almoço de domingo é uma falação só, oito mulheres reunidas. Mas algo me dizia naquela manhã que o almoço teria uma mulher a menos falando. Para a alegria do meu pai! Esqueci de contar, meu vovô já morreu, meu tio sumiu, então, os domingos para o meu pai sempre foram: “ Eu sozinho na casa das oito mulheres”. Diálogo:
- Não, não mexe aí! Ai! Vê se fica longe da cozinha!!!
- Desliga essa televisão, não suporto futebol no domingo!
- Ahhhhhhhhh! Uma barata! Uma barata! Mata! Mata!!!! - ou ainda, nos melhores dias - Querido, poderia abrir o vidro de palmito?
Coitado.

- É... Será que hoje eu posso ficar aqui em casa?
Mamãe responde:
- Por que Maria Luísa? Tá se sentindo mal?
- Nãããão mãe. Sei lá, só afim de ficar em casa.
Cara de desconfiada dela.
- Você quem sabe, mas sua vó vai ligar, sabe como ela adora esses almoços.
- Tá, se eu estiver acordada atendo.
- Credo Maria Luísa! Parece que tem cem anos!

E todos se foram. No apartamento ficou só o cheiro de macarrão com o perfume doce da Maria Clara, minha irmã. Que horas são? Uma da tarde, eles só voltam às dez da noite (deu dez horas minha mãe entra correndo na sala pra ver “Desperate Housewives”). Então, tenho nove horas livres! Troco de roupa rapidamente, algo bem confortável pra não atrapalhar em nada. Affffff. Meu cabelo está horripilante, talvez essa tiarinha de bolinha colorida resolva. Huuumm, até que ficou legal. Fechar a porta, torcer pra não encontrar ninguém no elevador.

- Maluuuuuuuuuuuuuuu!!!
- Olá seu Tibúrcio! – sempre achei engraçado o nome daquele senhor meu vizinho, me lembrava o professor Tibúrcio do Rá-Tim-Bum e ao mesmo tempo é tão sonoro: TIBÚRCIO! Parece um mergulho na piscina – Como vai o senhor?
- Bem, graças a Deus. Ué? Não era pra você estar na casa da sua avó agora?
- Resolvi ficar em casa, tenho coisas pra estudar.
- E aonde você vai agora?
- Ahhh – (Em off: Enxerido! Enxerido!) - Na farmácia!
- Que remédio? Posso te emprestar, tem um monte lá em casa.
- Não lembro o nome, é um que só o farmacêutico sabe, é pra dor de cabeça.
- Dipirona é bom, e eu tenho lá em casa.
- Não posso tomar dipirona.
- Tenho aspirina, AAS...
- Obrigada seu Tibúrcio, mas é melhor eu tomar o que eu tomo sempre.
- Está bem, qualquer coisa sabe que pode bater lá em casa.
- Ah! Valeu, o senhor é muito gentil. Deixa eu ir.

No elevador, ufa! Para que o porteiro não me veja basta sair pela garagem, aos domingos sempre tem gente saindo na hora do almoço. Uma fugitiva! É isso que eu sou! O legal dessa palhaçada toda de sair escondida é que dá mais emoção... Pra você ver como meu nível de emoção anda lá embaixo. Deixa eu ver o endereço no folder. Metrô, desço nessa estação, ando algumas quadras e pronto! Amo metrô! Se bem que trem bala é bem melhor, pessoas ansiosas como eu, querem chegar rápido nos lugares. Dez, quinze minutos, dá pra ouvir umas quatro músicas. Ganhei um Ipod num programa do rádio, nunca tinha ganhado nada nesses sorteios, na verdade, nunca acreditei neles. E não é porque ganhei que acredito, pra mim, eles disfarçam de vez em quando com um sorteio de verdade. Voltando ao meu passeio dominical (o texto está enrolado hoje) finalmente cheguei.
Uma caminhada e estarei lá. Espero que esteja cheio, o tempo está fechando um pouco, São Paulo, São Paulo. Daqui já consigo ouvir a música e sentir o cheiro doce, que sensação boa...

Continua...

terça-feira, setembro 05, 2006

A moto dos que não me amam


A Motoqueira

Todos eles têm motos, e você vem me chamar de motoqueira, eu que não tenho uma moto para andar dela? A moto deles é que é de uma qualidade boa, e eu entendo de moto para amor. Amor, eu já tenho 42 anos de estrada, e uma estrada do amor. O Jaime, Olívio, a Lenita, a Luísa, a Pati, o Brigadeiro, eu já vi tudo esses caras de moto. E o Brigadeiro também. Quando nós fomos à reunião dos “Heterônimos Aleatórios”, todos chegaram de moto menos eu, e agora ficam fazendo que não, fazendo papéis que mereciam receber do diretor da Globo. Pergunte ao Brigadeiro. Ele vai te dizer uma coisa para você. Eu estava sem moto aquele dia, mas eu sabia que o cara que estava com ele iria me chamar de motoqueira, porque ele dormiu e não percebeu o que eu tenho escondido por baixo da minha barriga do amor. Só percebeu a jaqueta de motoqueira, que eu ganhei de você. Ele não ouviu direito, e saiu contando a todo mundo, como você me falou.
Sinto muito que a sua vó morreu, mas isso é a única coisa que eu tenho a ver com ela, porque eu não conheci ela. Por que no lugar da sua vó você não põe a minha filha, que usa minha casa para fazer amor e só por isso me vê? Senão, não olhava para mim, não, aquela amor. Ela que você tinha que falar para todo mundo, porque ela que me deixa assim. E você põe a sua vó na amor do texto, amor, para as pessoas ter dó de mim. Você não está me deixando falar há muito tempo, amor. Há muito tempo atrás.
Pergunte ao Brigadeiro, e ele vai dizer para vocês que ele não me ouviu por apenas por dó. Porque se ele disser isso, ele é um amor. Eu não estava enxergando a festa, e perguntei a ele onde ela era. Ele me respondeu, e então aproveitou para me responder várias perguntas e coisas sem ser perguntas, como chama?, do ponto final (e não “?”). Você me chamou de velha porque falou da sua vó. Eu sou velha, feia, meu marido me largou sozinha e levou a moto. E se eu tivesse a moto, ninguém ia falar nada. Por que se eu tivesse a amor da moto, eu estaria mais bonita, mais desenvergonhada para falar com as pessoas. Lembrei: todas as pessoas da festa estavam de moto, era uma motoqueira só. Algumas motos eram muito ruins e eram só de enfeite, não funcionavam. Eu vi.
Todos que se afastaram da festa para ir embora e passaram por mim e o Brigadeiro não me amam, por que tinham que estar o tempo todo de moto, e tinham que contar o que estavam vendo, para tirar sarro do Brigadeiro e aparecer. Mas eu não me importo, ao contrário do que você diz no seu texto dos “Heterônimos Aleatórios”. E você é outro que não gosta de mim.
Nunca vai adiantar o que você falou que vai fazer, que é colocar o amor sobre tudo o que é ruim ou parece ruim. Nunca porque você só está cuidando do que é superficial. O que está errado é mais profundo, amor. Você tem que achar a essência das coisas. Porque, por exemplo, se você olhar bem, esta carta é uma declaração a você, e aposto que você não percebeu. Eu te amo. Por que não dá uma chance a mim?