RENDIÇÃO
Jaime
Decidi tirar férias. Férias das letras, desse caderno solitário, da terapeuta, da minha vida. Cansei de acordar às sete horas da manhã e pedir um pingado na padaria enfrente de casa. Cansei de chegar à faculdade e ver tantos alunos dispersos. Cansei da minha vida.
Por isso tirei férias. Cansei de não ouvir ninguém reclamar ou contar-me novidades. Cansei desse casulo ao qual me coloquei. Cansei de estar sozinho e conversar dia e noite com meu próprio eu, sem expectativas.
Fiquei três longos meses longe de tudo. Mais sozinho ainda, pensando no que queria dos outros. Hoje voltei e aproveitei para visitar a ela. Aquela mulher conhece mais a mim do que a ela mesma. Fez-me olhar o reflexo do espelho e mirar os olhos sem brilho que habitam minha face. Fez-me serrar os olhos depois, e sentir as mãos ásperas grudadas ao meu corpo. Fez-me falar e ao invés de contar-lhe, eu chorei.
Que vergonha senti. Diante de uma mulher, os olhos umedecerem. Ao invés de secar as lágrimas, peguei-me a soluçar. Que vergonha, meus caros. Soluçar. Como uma criança.
Levantei-me olhando para a porta e pedi-lhe licença. Passei pela secretária com a cabeça baixa, em direção a porta, querendo ar puro. Quase me choquei com uma mulher que levava um carrinho de bebês. Desviei-me e atravessei a rua.
Por meia hora o soluço me acompanhou, depois deve ter cansado. Chamei um táxi. Pedi que me levasse à felicidade. Ele não deve ter entendido. “Me leve à felicidade. Basta”.
Ele me deixou enfrente ao parque de diversões. Embora não guarde lembranças, a fragilidade do momento me fez recordar do dia em que meu pai apresentou-nos a roda gigante e nos disse que ela era como a vida, sempre dando voltas. Quis entrar.
Domingo, muita criança circulando. Filas imensas. Até que a encontrei. O sol já começava a fazer minha cabeça latejar então achei que bastaria ficar apenas admirando-a. Sentei-me num banco com sombra, ao lado de um carrinho de algodão doce.
Dei-me conta de que não havia sol. Aliás, parecia até que ia chover. A cabeça latejando deveria ser mais uma vez o meu eu, fugindo de tudo que não parece cômodo.
Enquanto refletia sobre minhas atitudes tolas, distrai-me com a garota que tentava desgrudar o algodão doce que uma pirralhinha metera-lhe no cabelo. Sorte a dela que eram curtos e pudera assim recuperar grande parte de seu doce.
Sempre quis ter cabelos longos, embora meu pai recriminasse esse gosto. Por que então as mulheres que tem esse privilégio insistem em cortá-los?
Mas a menina tinha o rosto delicado e um sorriso encantador. Estava sozinha também. E sem entender o porquê, me vi enfeitiçado em seus gestos. Ela me trouxe uma sensação de paz inexplicável. Certamente era sua felicidade a espalhar-se pelos ares.
Após o episódio do cabelo, levantou-se e entrou na roda gigante, que essa hora não tinha mais filas. Fiquei imobilizado, olhando-a sentar. Ao seu lado, um lugar vazio.
Quem sabe esse não seria o meu momento. Aquele com “o lugar certo, na hora certa, com a pessoa certa”, como costumam dizer. Nem pensei que ela poderia se assustar. Corri até vendedor de algodão doce e pedi com pressa um embrulho, talvez a maneira mais fácil de aproximar-me dela. Quando me virei para o brinquedo, lá estava ele, o banco amarelo. Vazio. E ela já não estava lá.
Voltei ao mesmo lugar e pus-me a deliciar o açúcar caramelado. Não era um amor chegando a explicação para o que me fizera sentir.
Um trovão e bastou para que o céu pesado e cinza caísse sobre minha cabeça. Com as mãos meladas pelo açúcar que derretera, levantei os óculos para enxugar os olhos. Com a vista embaçada, vi a menina de nuca nua a menos de cinco metros, à minha frente. A diferença é que estava seca e protegida na casinha de filas, enquanto eu sentia a água sendo absorvida pela minha roupa mal tratada. Era isso que fazia-nos diferentes, desde o começo. Ela sabia o que fazer, sabia o que quer. Ela andava de cabeça erguida e não tinha medo de ousar, mesmo estando sozinha. Ela, aos meus olhos, sabia ser feliz com ela mesma.
“Uma moça de sorte”. E conclui que já era hora de voltar.
O taxista quase não me deixou entrar. Fez-me comprar uma capa de chuvas para não molhar o banco. Achei melhor me calar e obedecer, como sempre fizera na vida. Ao menos cheguei à minha casa. Meu apartamento bagunçado, minha louça suja, minha cama vazia. O único destino da minha vida, desde que o tempo me fez deixar de ser criança. Em meio a tanto entulho deve estar ela perdida. A minha felicidade.
Deparei-me sem querer com meu próprio reflexo no espelho enquanto tirava a camisa ensopada. Confesso que me surpreendi. Meus olhos voltaram a ter um brilho há muito tempo apagado.
Maria Luísa. Maria Luísa. A única que sabia me fazer sorrir e a mesma que me lembrava que sentir saudades não era pecado. Saudades, Maria Luísa. Saudades do seu colo de mãe.
3 Comentários:
Legal ver o blog que eu adoro atualizado! Gostei muito do seu retorno Jaime! Essa vida é muito louca mesmo, cheia de acasos... Uma pena vc ter encontrado o banco amarelo vazio. bjinhos
Jaime!
Eu vou chutar que esse brilho nos olhos se deve à chuva que você tomou. Lava a alma, sabe? De verdade...
Aliás você comeu o algodão doce? Pra se sentir criança de novo.
Beijocas
Jaime, eu sou um grande admirador seu e gostaria de saber o que você pensou quando percebeu que a felicidade estava no parque de diversões. Mande a resposta com um autógrafo e um abraço. Outro para você.
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